Dezenove dias depois do sumiço de Amarildo de Souza, perduram muitos
mistérios, mas uma convicção se consolidou: em qualquer cenário, o
Estado tem responsabilidade pelo que ocorreu ao pedreiro morador da
Rocinha.
Desenvolve-se uma manobra de comunicação de segmentos da
Polícia Militar do Rio de Janeiro que tenta estabelecer o seguinte
raciocínio: se o desaparecido foi morto por traficantes de drogas, a
culpa seria exclusivamente dos bandidos.
A ideia é capenga, por
vários motivos. Antes, é importante enfatizar que, enquanto não houver
certeza do que se passou, constitui leviandade afirmar o contrário.
Tudo
começou com o procedimento ilegal de policiais militares que levaram
Amarildo, 42, para a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da favela na
noite de 14 de julho. Como as autoridades divulgaram, existe veto
expresso a esse comportamento. Se há suspeita _Amarildo eventualmente
teria sido confundido com um foragido da Justiça_, o cidadão deve ser
conduzido pela PM a uma delegacia da Polícia Civil.
Parentes de
Amarildo contam que havia contra ele uma bronca de um PM truculento, do
efetivo da UPP. De dezenas de câmaras de vigilância na Rocinha, só as
duas defronte à sede da UPP não funcionaram em 14 de julho, quando
Amarildo foi arrastado até lá. O GPS da viatura que o transportou, que
tem de permanecer em operação, a fim de permitir a reconstituição dos
trajetos percorridos pelo veículo, estava desligado. O quadro indiciário
contra os PMs é eloquente. A família do trabalhador supõe que ele
esteja morto, assassinado por policiais.
Suponhamos que Amarildo
tivesse sido liberado e depois executado por traficantes. Isso só teria
acontecido num contexto em que ele passou pela UPP. Essa passagem teria
sido determinante para sua morte (marginais desconfiam de quem é detido e
logo liberado; temem que o ex-detido tenha sido recrutado como
alcaguete da polícia).
Outra hipótese, ainda que inverossímil:
Amarildo escafedeu-se, com medo de ser trucidado por policiais ou
bandidos ou por policiais bandidos (o governo emprega o eufemismo “maus
policiais”). Ele teria preferido esse caminho depois de passar, em abuso
de poder, pela UPP.
Como em um roteiro de novela à mexicana,
concedamos um delírio à manobra em curso para retirar ou minimizar a
responsabilidade da PM: e se Amarildo foi liberado da UPP, tropeçou,
bateu com a cabeça numa pedra, perdeu a memória e está ganhando a vida
como pescador na Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul? A polícia
continuaria a ter responsabilidade determinante, pois o pedreiro que
pesca nas horas vagas teria batido com a cabeça só depois de ser
criminosamente carregado à UPP.
Não será surpresa para este blog
se a investigação em curso esclarecer o episódio. Ao contrário do que
ocorreu com a chacina no complexo da Maré, em junho, quando a classe
média carioca e o jornalismo pouca pelota deram à barbárie, não há como
lançar a pecha de delinquente contra o pedreiro, que a comunidade
identifica como trabalhador honesto (e mesmo contra bandido a legislação
não admite pena de morte).
A zona sul cobra Sérgio Cabral.
Apelando para o sofrimento dos seus filhos pequenos, o governador
implora pelo fim dos protestos diante de seu apartamento. No morro e no
asfalto, os manifestantes respondem dizendo que ninguém tem sofrido mais
do que os seis filhos do Amarildo. Politicamente, é de interesse de
Cabral chegar aos culpados.
A primeira fase do inquérito foi tocada por um dos melhores e mais confiáveis delegados do Rio, Orlando Zaccone.
Como
determina o protocolo, o caso passou à Divisão de Homicídios. O
secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, sublinhou que foram
solucionados todos os assassinatos na Rocinha pós-introdução da UPP.
Trocando em miúdos, a polícia sabe elucidar crimes. O desafio é
desvendar esse, em que é evidente a participação de PMs, pelo menos ao
levar Amarildo para a UPP.
Cria da Polícia Federal, que investiga
melhor do que as Polícias Civis, o delegado federal Beltrame sabe como
caçar bandidos, fardados ou não. Sabe que tipo de interceptação _com
autorização judicial!_ pode ser feita. Sabe quem eram os PMs que
forçaram Amarildo a ir até a UPP. O secretário assegurou que resolverá o
caso. Torço para que ele cumpra a promessa.
Três comentários finais.
Houve
uma gravíssima violação de direitos humanos. Na hipótese A, B ou C, a
Polícia Militar, portanto o Estado, tem responsabilidade pelo
desparecimento de Amarildo.
Se não descobrirem o que ocorreu,
restará a constatação de que PMs são inimputáveis, que há uma lei para
os cidadãos e outra para os “homens da lei”. Idêntica apreciação valerá
se apontarem bodes expiatórios com base em indícios frágeis ou forjados
_evidentemente, não é o que se espera.
Na manifestação de ontem à
noite, centenas de moradores da Rocinha interditaram e depois
atravessaram o túnel Zuzu Angel. É um encontro pelas esquinas da
história. Em 1976, ali no sopé do morro, o Karmann Ghia da estilista que
viria a batizar o túnel foi abalroado propositalmente, em um atentado
mortal de facínoras, como reconheceu a União. Zuzu incomodava a ditadura
ao exigir o esclarecimento sobre o paradeiro de seu filho, o
guerrilheiro Stuart, até hoje desaparecido. Agora, quem fecha o túnel
com o nome daquela grande mulher é o povo da favela, em busca de outro
brasileiro com que sumiram.
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